quarta-feira, 20 de maio de 2015

As ruas pediram reforma política. O Congresso entrega uma taturana

Leonardo Sakamoto
Muitos dos jovens que foram às ruas em junho de 2013, reivindicando participar ativamente da política, não estavam pedindo a mudança do sistema proporcional (como é hoje, com uma correspondência entre cadeiras obtidas e votos no partido/candidato) para o distrital puro (a cidade e o estado são divididos em distritos que elegem apenas um representante), misto (em que se vota para o representante do distrito e para um partido) e o “distritão'' (em que a eleição de vereadores e deputados fica semelhante à de prefeitos e governadores – os mais votados vencem, independentemente do voto partidário).
Isso é uma resposta escolhida pelo próprio sistema que embalou uma serpente em um pacote reluzente e, sorridente, entrega de presente à população como se um modelo que pode levar a um desequilíbrio na representação política fosse a solução perfeita e final. Não estou demonizando o voto distrital misto de antemão, mas ele pode causar outras distorções e não ajudar no controle do representante pela população ou a baratear campanhas.
Mais efeito causaria uma mudança na forma de doação eleitoral por parte de empresas, que deveria ser revisto ou duramente limitado. Mas isso, a maioria dos nobres parlamentares não quer.
Os jovens queriam mais formas de interferir diretamente nos rumos da ação política de sua cidade, estado ou país. Mas não da mesma forma que as gerações de seus pais e avós.
Porque, naquela época, ninguém em sã consciência poderia supor que criaríamos uma camada digital de relacionamento social, que ignorasse distância e catalisasse processos. Pois, quando a pessoa está atuando através de uma rede social, não reporta simplesmente. Inventa, articula, mente, salva, agride, muda. Racional e irracionalmente. Enfim, vive.
Por isso, a molecada acha estranho quando alguém reclama com um “sai já da internet e vai jantar!''. Como assim?! – pensam. É como falar: “saiam já deste planeta''. Não dá, não é outra vida, é a mesma. Ele ou ela está lá e está aqui. Ao mesmo tempo. Os pais piram, mas é simples assim.
Então, para essa geração não é estranho que as plataformas digitais sejam usadas na discussão política, no debate de alternativas e, por que não, no processo de construção política e mesmo de eleição.
Estranho é não usar essas ferramentas. Por que eu preciso ir até uma reunião com meu representante, meu vereador, deputado, senador, se há maneiras mais fáceis, rápidas e interessantes que podem ser usadas na internet para isso? Por que fazer política tem que ser chato?
Não estou falando apenas das redes sociais convencionais. Mas há muita tecnologia  interessante sendo desenvolvida para esse fim que a maioria de nós desconhece (com exceção de quem está por dentro da cultura hacker, é claro) por falta de discussões sérias sobre o assunto.
Sei que não é possível adotar e universalizar processos digitais de participação direta imediatamente. Isso demanda algumas ações prévias. Por exemplo, reduzir o analfabetismo digital no Brasil, concentrado não na faixa de renda mais baixa, mas na faixa etária mais alta. Isso sem contar a ampliação da qualidade da educação formal e, mais importante que isso, da conscientização de que cada um é o protagonista de sua própria história.
E, é claro, aprofundar a reflexão sobre as próprias redes sociais e o seu uso para fazer política. A internet não é algo “bom'' ou “ruim''. É uma plataforma. O que fazemos dela e como é que importa.
O problema é que enquanto muitos discutem como manter a política de forma analógica, outros tantos fazem isso de forma digital com extrema competência. E nem sempre tendo boas intenções.
A várzea das redes sociais com as pessoas acreditando em qualquer coisa com texto bem escrito, mas anônimo, está aí para não me deixar mentir.
Dividir o país em distritos eleitorais geograficamente delimitados faz sentido em um momento em que os relacionamentos sociais e a vida comunitária rompe fronteiras, gera empatias e conecta pessoas em coletividades que pouco têm a ver com o seu bairro?
Plebiscitos, referendos, projetos de iniciativas populares, conselhos com representantes por tema ou distrito são os primeiros passos, não os últimos. A política está sendo radicalmente transformada pela mudança tecnológica. Participar do rumo das coisas a cada quatro anos não será mais suficiente. Pois, em verdade, nunca foi. Iremos participar em tempo real.
Mas ao invés de encaminhar essa discussão, o Congresso Nacional vai no sentido oposto, tentando implementar fórmulas que beneficiam os parlamentares que já estão no poder ou os que contam com currais eleitorais. Modelos que dificultam a eleição de quem está mais à esquerda ou mais à direita no espectro político e poderiam – mais do que os centristas – a forçar por mudanças.
Aliás, levando a sério alguns discursos que estão circulando nos plenários da Câmara e do Senado, a solução para os problemas de representação política passa apenas pela mudança do voto proporcional para o distrital ou para adoção da lista fechada.
E quando há qualquer proposta para aumentar os instrumentos de participação popular, como conselhos ligados à defesa dos direitos humanos – bandeira importantes de muitos parlamentares ligados ao PSDB e ao PT durante a redemocratização – elas é taxada de golpe no sentido de tirar poder do Legislativo.
É óbvio que, para essas arenas de participação popular serem efetivas, precisam deter algum poder e não serem apenas locais de discussão e aconselhamento. E isso gera conflito entre novas instâncias de representação e as convencionais.
Afinal, senadores, deputados, vereadores, membros das esferas federal estadual e municipal e quem sistematicamente ganha com a proximidade a eles, enfim, o grupo de poder estabelecido, tendem a não gostar da ideia de ver outros atores ganharem influência, outros que não fazem parte do joguinho. Há gente que teme, com o monitoramento por parte do povo, ficar sem o instrumento clientelista de poder asfaltar uma determinada rua e não outra, empregar conhecidos e correligionários.
Durante décadas, brigamos para a implantação de instâncias de participação popular. E, agora, que elas começam a ser discutidos em determinados espaços, ainda que de forma tímida e por conta de intensa pressão social, as propostas são congeladas por medidas em tramitação no Congresso e ações diretas de inconstitucionalidade.
Por fim, aos líderes políticos, econômicos e sociais que gostam mais do cheiro da antiga naftalina do que de gente, vale um lembrete:
“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.'' Constituição Federal, artigo 1o, parágrafo único.
Isso é tão claro. Mas a vida anda tão nonsense que um deputado federal está propondo a mudança para “todo poder emana de Deus''. O PSol pode até ter expulsado o cabo Daciolo, autor dessa sugestão tresloucada, de suas fileiras, mas o seu pensamento está mais vivo do que nunca.
O Congresso vai mudar muita coisa nos próximos anos. Para pior.

terça-feira, 19 de maio de 2015

1º de maio, dia dx trabalhadxr

(Socialista Morena)
Gustavo Fernandes, de 20 anos, fez questão de não esconder nada na entrevista de trabalho na UNIP (Universidade Paulista) em Brasília: “Sou homem trans”. A honestidade, porém, não o livrou de sofrer assédio moral durante o tempo em que atuou lá, como auxiliar de coordenação psicológica. Ele afirma que o setor de recursos humanos lhe negou o uso do nome social no crachá, e que, sob ameaça de ser demitido, teria sido obrigado a utilizar um uniforme feminino. Sem conseguir emprego fixo há seis meses, desde que deixou a universidade, ele diz que a discriminação ao trabalhador transexual começa já na entrevista.
“Muitos acreditam que, por sermos trans, não somos sérios ou capazes de desempenhar funções. Sou dispensado em menos de cinco minutos de conversa nos locais onde preciso apresentar algum documento de identificação. Dizem de cara que não tenho o perfil que a empresa procura.”
O preconceito, conta Gustavo, também parte de pessoas do próprio meio LGBT que não entendem o que é identidade de gênero. “Um ex-colega de trabalho, que é gay, sempre me fazia perguntas invasivas sobre a minha vida íntima na frente de outros funcionários e alunos, o que era humilhante. Ele via em mim uma figura feminina ‘defeituosa’. Suportar esse tipo de desconforto, além da resistência por parte da empresa em aceitar que não sou uma mulher, foi o que, depois de um ano e sete meses, me fez pedir as contas”, diz. “Arranjar emprego é difícil, principalmente na condição de homem trans, mas não vi outra saída. Não me sentia bem-vindo.”
Em nota, a UNIP negou as acusações e afirmou repudiar todo e qualquer ato de discriminação. “Transexuais são mais do que bem-vindos na universidade. Atualmente, inclusive, contamos com profissionais trans, que são tratadas pelo nome social e com o respeito que merecem. Ocorrências do tipo não são compatíveis com a natureza do estabelecimento. Como uma instituição de ensino, prezamos pela tolerância, pelo amparo e pelo respeito a todo o pessoal interno ou externo, independente de cor, gênero, crença, orientação sexual etc.”.
Um levantamento feito em 2013 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta que 90% das mulheres transgêneras recorrem à prostituição no Brasil devido à rejeição na hora de concorrer a uma vaga no mercado formal. A travesti Rafaelly, de 24 anos, conhece de perto essa realidade: assistente social, ela ganha a vida como garota de programa. O único emprego de carteira assinada que teve foi há cinco anos, quando estagiou em um programa de jovens aprendizes na Embrapa Cerrados. Na época, o salário, de pouco mais de 400 reais, não compensava a intolerância de que era vítima, diz.
“Algumas atitudes eram veladas, outras mais ostensivas. Comentários, risadinhas… Tudo isso eu vivenciei durante três anos. Minha chefe sempre foi receptiva, me chamava pelo nome social. Mas ouvi de outras chefias, enquanto era aprendiz, que querer ter um ‘pseudônimo’ estampado no crachá seria ilegal e ia contra as regras da empresa.” A Embrapa não respondeu aos questionamentos da reportagem.
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(A garota de programa Rafaelly)
Com o término do estágio, Rafaelly não viu outra alternativa a não ser fazer das ruas do Setor Comercial Sul, na capital federal, seu “escritório noturno”, como descreve, bem-humorada. Ela revela ganhar até 5 mil reais por mês se prostituindo. Saiu de uma casa simples na cidade-satélite de Candangolândia, e hoje tem carro novo e um apartamento na Asa Norte. Orgulha-se de pagar os impostos em dia e de ajudar a avó, com quem mantém pouco contato. O sentimento de liberdade, no entanto, não é pleno. “Não faço programa porque morro de amores pela profissão. Sonho me casar e ter uma família… Ainda tento sair dessa vida. Envio currículos, mas na hora da entrevista vem o problema. Como no CV consta um nome masculino, quando eles me convocam e aparece uma mulher, o preconceito grita. Fazem a entrevista, mas nunca ligam para dar uma resposta.”
A publicitária Ludmylla Santiago, de 32 anos, nunca teve um trabalho formal até assumir um cargo comissionado na Secretaria de Direitos Humanos do Distrito Federal (SDH/GDF), em março deste ano. Negra e transexual, Ludmylla sabia que as dificuldades de colocação profissional seriam um desafio a mais que precisaria encarar.
“Desde que me formei, em 2008, envio currículos para agências de marketing e publicidade. No início, achava que não retornavam por conta da inexperiência que tinha na área. Recebia elogios, mas, após a seleção, a resposta era sempre negativa. Com o tempo, passei a notar que colegas de faculdade, que também nunca haviam exercido a profissão, tinham muito mais facilidade em arranjar emprego. Comecei a me identificar como mulher nos currículos, sempre salientando a questão da identidade de gênero. A partir de então, nem mesmo para as seleções eu era convocada. Caí no limbo profissional”, relata Ludmylla.
Hoje ela preside o Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Anav-Trans) do Distrito Federal. “Ainda batalho para conseguir reconhecimento. Espero contribuir para que, um dia, nós alcancemos espaço e tratamento igualitário no mercado de trabalho e na sociedade como um todo.”
ludmylla
( A publicitária Ludmylla)
Presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Keyla Simpson acredita que o índice de pessoas trans sem emprego no país seja maior do que as estimativas sugerem. “São números superficiais, se considerarmos a extensa demografia do Brasil. Infelizmente, o governo só separa a população por masculino e feminino. Mesmo em levantamentos voltados aos LGBTs, o público trans é invisível. O número de transexuais e travestis desempregados deve ser ainda mais assustador.”
Um estudo realizado em 2008 pela Universidade de Chicago revelou que mulheres transexuais (MtF) recebem um salário 32% menor do que recebiam antes de assumirem a identidade feminina. Já os homens trans (FtM) recebem até 1,5% a mais do que as mulheres cisgêneras.
Graduada em análise de sistemas e em letras, com pós-graduação em engenharia de software, Daniela Andrade tem um currículo respeitável aos olhos de qualquer especialista em recursos humanos. Um detalhe, porém, sempre serviu como barreira para que a colocação profissional da paulista de 31 anos ocorresse: Daniela é transexual. Baseando-se na própria experiência, Daniela se juntou à advogada Márcia Rocha, 50, e ao designer mineiro Paulo Bevilacqua, 28, para colocar no ar o site Transempregos, para apoiar a colocação profissional de travestis e transexuais no mercado de trabalho. Lançada há pouco mais de um ano, a plataforma pode ser acessada por empresas e trabalhadores sem pagar nada.
“Tem contratador que encara a aparência de um candidato como empecilho para a admissão. Se o nome que consta no currículo não condiz com o ‘pré-conceito’ que ele cultiva sobre o que é masculino ou feminino, surge um obstáculo. Esse problema independe de qualificação profissional”, analisa Márcia Rocha, que também integra a Comissão de Direitos à Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo. “As empresas têm a chave para romper com esse problema. Se transexuais conseguirem oportunidades de se alavancar na carreira como qualquer outro trabalhador, sua história vai quebrar paradigmas.” O Transempregos conta atualmente com mais de 400 currículos cadastrados e aceita colaboração de empresas de todo o país.
O blog conversou com a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) e representante da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade), Renata Coelho Vieira.
Socialista Morena – Como o trabalhador trans deve agir em caso de assédio moral?
Renata Vieira – Condutas discriminatórias e práticas que causam aviltamento são motivos para que o trabalhador exija a rescisão contratual. Nesse caso, é importante procurar o sindicato de classe para pedir a rescisão indireta judicialmente, alegando culpa do empregador, assim o funcionário sai da empresa com todos os direitos assegurados e ainda pode pleitear uma indenização por dano moral.
SM – A que se deve a marginalização do transexual no trabalho?
RV – Nossa sociedade é machista e sexista. A aceitação de homossexuais ainda é pouca e a representação de negros no serviço público é ínfima. Com pessoas trans, isso tudo é ainda mais evidente. São fatores culturais, religiosos e educacionais que influenciam no comportamento dos empregadores, um reflexo da conduta social excludente. A diversidade ainda é um bem a ser conquistado no Brasil. Nas organizações privadas não é diferente: a contratação muitas vezes não é pautada em um bom currículo ou na experiência do candidato trans, mas em elementos subjetivos ligados a preconceitos. A nossa cultura ainda distingue “o trabalho da mulher” do “trabalho do homem”… Critérios que formam um “operário padrão” que não se coaduna com a realidade diversificada, miscigenada e heterogênea da população brasileira.
SM – Não existem muitos números oficias sobre trabalhadores trans…
RV – É verdade. Travestis e transexuais sofrem pela aparência fora dos padrões considerados “normais” pelas pessoas e pela documentação com nome diverso do nome social. Desde a família, a escola, a universidade, ao atendimento em serviço de saúde, ao tratamento que recebem de policiais, até os “olhares” em espaços de lazer – tudo para esse grupo é restrito a partir do momento que assumem a própria identidade. Os desafios são enormes, obter ensino e qualificação é árduo… Num mercado de trabalho competitivo, baseado no lucro e no alcance de metas, essas pessoas acabam tendo maior dificuldade de colocação profissional. Marginalizar essa minoria, assim, acaba sendo o caminho adotado por muitos.
SM – Muitas companhias alegam que acatar um nome alheio ao que consta no RG é ilegal.
RV – Reconhecer o nome social é uma grande medida de inclusão. Não existe ilegalidade nenhuma nisso. O empregador, quando contrata, contrata uma pessoa, uma vida – não um braço, uma perna, uma cabeça. O funcionário cede sua força de trabalho, não sua dignidade e seus direitos fundamentais, porque esses não fazem parte do contrato de trabalho. Contrata-se a pessoa como um todo, e o nome faz parte deste todo, faz parte da identidade de cada um.
SM – Então a deslegitimação do nome social adotado por pessoas trans pode ser considerada um tipo de violação aos direitos fundamentais?
RV – Sim. Socialmente, o nome é um símbolo importantíssimo. Quando encontramos alguém de quem esquecemos o nome, ficamos constrangidos. Confundir o nome da pessoa num encontro é quase um “delito” social. Por outro lado, nos orgulhamos quando vemos nosso nome num livro publicado, numa referência elogiosa, ou quando alguém nos cita numa aula, num evento, numa festa familiar… Com a tecnologia, “marcamos” os nomes das pessoas em fotos e eventos nas redes sociais. Acatar o nome social de transexuais é um ato político.