(Socialista Morena)
Gustavo Fernandes, de 20 anos, fez questão de não esconder nada na entrevista de trabalho na UNIP (Universidade Paulista) em Brasília: “Sou homem trans”. A honestidade, porém, não o livrou de sofrer assédio moral durante o tempo em que atuou lá, como auxiliar de coordenação psicológica. Ele afirma que o setor de recursos humanos lhe negou o uso do nome social no crachá, e que, sob ameaça de ser demitido, teria sido obrigado a utilizar um uniforme feminino. Sem conseguir emprego fixo há seis meses, desde que deixou a universidade, ele diz que a discriminação ao trabalhador transexual começa já na entrevista.
“Muitos acreditam que, por sermos trans, não somos sérios ou capazes de desempenhar funções. Sou dispensado em menos de cinco minutos de conversa nos locais onde preciso apresentar algum documento de identificação. Dizem de cara que não tenho o perfil que a empresa procura.”
O preconceito, conta Gustavo, também parte de pessoas do próprio meio LGBT que não entendem o que é identidade de gênero. “Um ex-colega de trabalho, que é gay, sempre me fazia perguntas invasivas sobre a minha vida íntima na frente de outros funcionários e alunos, o que era humilhante. Ele via em mim uma figura feminina ‘defeituosa’. Suportar esse tipo de desconforto, além da resistência por parte da empresa em aceitar que não sou uma mulher, foi o que, depois de um ano e sete meses, me fez pedir as contas”, diz. “Arranjar emprego é difícil, principalmente na condição de homem trans, mas não vi outra saída. Não me sentia bem-vindo.”
Em nota, a UNIP negou as acusações e afirmou repudiar todo e qualquer ato de discriminação. “Transexuais são mais do que bem-vindos na universidade. Atualmente, inclusive, contamos com profissionais trans, que são tratadas pelo nome social e com o respeito que merecem. Ocorrências do tipo não são compatíveis com a natureza do estabelecimento. Como uma instituição de ensino, prezamos pela tolerância, pelo amparo e pelo respeito a todo o pessoal interno ou externo, independente de cor, gênero, crença, orientação sexual etc.”.
Um levantamento feito em 2013 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta que 90% das mulheres transgêneras recorrem à prostituição no Brasil devido à rejeição na hora de concorrer a uma vaga no mercado formal. A travesti Rafaelly, de 24 anos, conhece de perto essa realidade: assistente social, ela ganha a vida como garota de programa. O único emprego de carteira assinada que teve foi há cinco anos, quando estagiou em um programa de jovens aprendizes na Embrapa Cerrados. Na época, o salário, de pouco mais de 400 reais, não compensava a intolerância de que era vítima, diz.
“Algumas atitudes eram veladas, outras mais ostensivas. Comentários, risadinhas… Tudo isso eu vivenciei durante três anos. Minha chefe sempre foi receptiva, me chamava pelo nome social. Mas ouvi de outras chefias, enquanto era aprendiz, que querer ter um ‘pseudônimo’ estampado no crachá seria ilegal e ia contra as regras da empresa.” A Embrapa não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Com o término do estágio, Rafaelly não viu outra alternativa a não ser fazer das ruas do Setor Comercial Sul, na capital federal, seu “escritório noturno”, como descreve, bem-humorada. Ela revela ganhar até 5 mil reais por mês se prostituindo. Saiu de uma casa simples na cidade-satélite de Candangolândia, e hoje tem carro novo e um apartamento na Asa Norte. Orgulha-se de pagar os impostos em dia e de ajudar a avó, com quem mantém pouco contato. O sentimento de liberdade, no entanto, não é pleno. “Não faço programa porque morro de amores pela profissão. Sonho me casar e ter uma família… Ainda tento sair dessa vida. Envio currículos, mas na hora da entrevista vem o problema. Como no CV consta um nome masculino, quando eles me convocam e aparece uma mulher, o preconceito grita. Fazem a entrevista, mas nunca ligam para dar uma resposta.”
A publicitária Ludmylla Santiago, de 32 anos, nunca teve um trabalho formal até assumir um cargo comissionado na Secretaria de Direitos Humanos do Distrito Federal (SDH/GDF), em março deste ano. Negra e transexual, Ludmylla sabia que as dificuldades de colocação profissional seriam um desafio a mais que precisaria encarar.
“Desde que me formei, em 2008, envio currículos para agências de marketing e publicidade. No início, achava que não retornavam por conta da inexperiência que tinha na área. Recebia elogios, mas, após a seleção, a resposta era sempre negativa. Com o tempo, passei a notar que colegas de faculdade, que também nunca haviam exercido a profissão, tinham muito mais facilidade em arranjar emprego. Comecei a me identificar como mulher nos currículos, sempre salientando a questão da identidade de gênero. A partir de então, nem mesmo para as seleções eu era convocada. Caí no limbo profissional”, relata Ludmylla.
Hoje ela preside o Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Anav-Trans) do Distrito Federal. “Ainda batalho para conseguir reconhecimento. Espero contribuir para que, um dia, nós alcancemos espaço e tratamento igualitário no mercado de trabalho e na sociedade como um todo.”
Presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Keyla Simpson acredita que o índice de pessoas trans sem emprego no país seja maior do que as estimativas sugerem. “São números superficiais, se considerarmos a extensa demografia do Brasil. Infelizmente, o governo só separa a população por masculino e feminino. Mesmo em levantamentos voltados aos LGBTs, o público trans é invisível. O número de transexuais e travestis desempregados deve ser ainda mais assustador.”
Um estudo realizado em 2008 pela Universidade de Chicago revelou que mulheres transexuais (MtF) recebem um salário 32% menor do que recebiam antes de assumirem a identidade feminina. Já os homens trans (FtM) recebem até 1,5% a mais do que as mulheres cisgêneras.
Graduada em análise de sistemas e em letras, com pós-graduação em engenharia de software, Daniela Andrade tem um currículo respeitável aos olhos de qualquer especialista em recursos humanos. Um detalhe, porém, sempre serviu como barreira para que a colocação profissional da paulista de 31 anos ocorresse: Daniela é transexual. Baseando-se na própria experiência, Daniela se juntou à advogada Márcia Rocha, 50, e ao designer mineiro Paulo Bevilacqua, 28, para colocar no ar o site Transempregos, para apoiar a colocação profissional de travestis e transexuais no mercado de trabalho. Lançada há pouco mais de um ano, a plataforma pode ser acessada por empresas e trabalhadores sem pagar nada.
“Tem contratador que encara a aparência de um candidato como empecilho para a admissão. Se o nome que consta no currículo não condiz com o ‘pré-conceito’ que ele cultiva sobre o que é masculino ou feminino, surge um obstáculo. Esse problema independe de qualificação profissional”, analisa Márcia Rocha, que também integra a Comissão de Direitos à Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo. “As empresas têm a chave para romper com esse problema. Se transexuais conseguirem oportunidades de se alavancar na carreira como qualquer outro trabalhador, sua história vai quebrar paradigmas.” O Transempregos conta atualmente com mais de 400 currículos cadastrados e aceita colaboração de empresas de todo o país.
O blog conversou com a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) e representante da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade), Renata Coelho Vieira.
Socialista Morena – Como o trabalhador trans deve agir em caso de assédio moral?
Renata Vieira – Condutas discriminatórias e práticas que causam aviltamento são motivos para que o trabalhador exija a rescisão contratual. Nesse caso, é importante procurar o sindicato de classe para pedir a rescisão indireta judicialmente, alegando culpa do empregador, assim o funcionário sai da empresa com todos os direitos assegurados e ainda pode pleitear uma indenização por dano moral.
SM – A que se deve a marginalização do transexual no trabalho?
RV – Nossa sociedade é machista e sexista. A aceitação de homossexuais ainda é pouca e a representação de negros no serviço público é ínfima. Com pessoas trans, isso tudo é ainda mais evidente. São fatores culturais, religiosos e educacionais que influenciam no comportamento dos empregadores, um reflexo da conduta social excludente. A diversidade ainda é um bem a ser conquistado no Brasil. Nas organizações privadas não é diferente: a contratação muitas vezes não é pautada em um bom currículo ou na experiência do candidato trans, mas em elementos subjetivos ligados a preconceitos. A nossa cultura ainda distingue “o trabalho da mulher” do “trabalho do homem”… Critérios que formam um “operário padrão” que não se coaduna com a realidade diversificada, miscigenada e heterogênea da população brasileira.
SM – Não existem muitos números oficias sobre trabalhadores trans…
RV – É verdade. Travestis e transexuais sofrem pela aparência fora dos padrões considerados “normais” pelas pessoas e pela documentação com nome diverso do nome social. Desde a família, a escola, a universidade, ao atendimento em serviço de saúde, ao tratamento que recebem de policiais, até os “olhares” em espaços de lazer – tudo para esse grupo é restrito a partir do momento que assumem a própria identidade. Os desafios são enormes, obter ensino e qualificação é árduo… Num mercado de trabalho competitivo, baseado no lucro e no alcance de metas, essas pessoas acabam tendo maior dificuldade de colocação profissional. Marginalizar essa minoria, assim, acaba sendo o caminho adotado por muitos.
SM – Muitas companhias alegam que acatar um nome alheio ao que consta no RG é ilegal.
RV – Reconhecer o nome social é uma grande medida de inclusão. Não existe ilegalidade nenhuma nisso. O empregador, quando contrata, contrata uma pessoa, uma vida – não um braço, uma perna, uma cabeça. O funcionário cede sua força de trabalho, não sua dignidade e seus direitos fundamentais, porque esses não fazem parte do contrato de trabalho. Contrata-se a pessoa como um todo, e o nome faz parte deste todo, faz parte da identidade de cada um.
SM – Então a deslegitimação do nome social adotado por pessoas trans pode ser considerada um tipo de violação aos direitos fundamentais?
RV – Sim. Socialmente, o nome é um símbolo importantíssimo. Quando encontramos alguém de quem esquecemos o nome, ficamos constrangidos. Confundir o nome da pessoa num encontro é quase um “delito” social. Por outro lado, nos orgulhamos quando vemos nosso nome num livro publicado, numa referência elogiosa, ou quando alguém nos cita numa aula, num evento, numa festa familiar… Com a tecnologia, “marcamos” os nomes das pessoas em fotos e eventos nas redes sociais. Acatar o nome social de transexuais é um ato político.
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